Pedagogia do desabrigado
domtotal.com | 05/02/2021
Recado de uma ativista cidadã
Fernando Fabbrini*
Lixo à solta revela o descaso vergonhoso do morador pela sua cidade. O cara raciocina assim: “ué, a rua não é minha; então, limpá-la é problema dos outros”. Cidade suja não só nos ofende pelo lado estético, serve de incentivo para sucessivas e piores transgressões, como demonstrado pela famosa teoria das Janelas Quebradas.
Pessoas desempregadas e sem casa vêm ocupando os viadutos, as marquises e os canteiros, trazendo para nosso cotidiano o retrato complicado do mundo de hoje. No Brasil, a coisa é ainda pior por conta do desastre causado pelos governos anteriores. Enquanto iludiam o povão com estádios de futebol, olimpíadas, carnavais, discursos demagógicos e promessas, os corruptos, caladinhos, enriqueciam suas contas no exterior, banqueiros, empresas cúmplices e companheiros. Deu nisso.
Os moradores de rua não podem se tornar dinossauros numa sala de visitas – todo mundo vê, mas faz de conta que não nota os colchões velhos, as sobras de comida nas marmitas e os farrapos que os circundam. Continua uma discussão infindável em torno do assunto. Sociólogos, comerciantes, psicólogos, juristas e administradores se engalfinham tentando impor seus pontos de vista – e a chamada população de rua só aumenta.
Poderíamos gastar tempo e dinheiro de maneira mais inteligente. Fundamental seria uma triagem, separando gente honesta, que sonha com um trabalho e uma vida digna, e dar a elas uma chance. Disse “triagem” porque há também nessa situação muitos malandros, criminosos que nela se abrigam impunes, resguardados por algum recurso da moda politicamente correta. A droga é um complicador a mais. Dos poucos dependentes que aceitam ajuda, quase todos retornam às cracolândias nos dias seguintes.
Escrevo sobre isso porque conheci esta semana uma ativista social, uma verdadeira revolucionária. Trata-se de dona Gilda, senhora de seus quase oitenta anos. Dona Gilda tem pavor de sujeira; é do tipo que recolhe lixo alheio das redondezas. Ela já foi assaltada duas vezes e está segura de que seus algozes pertencem ao grupo de moradores de rua da pracinha aqui perto, ponto de crack.
Criativa e proativa, ela decidiu melhorar suas relações com os novos vizinhos compulsórios. Comprou vassoura e sacos pretos; deu-os de presente à turma e estabeleceu um pacto: se participarem da limpeza mínima do local ela retribuirá com roupas usadas, mantimentos, remédios. “Me ajudem a deixar a rua limpinha?” – ela propôs, com sorrisos. Está começando a funcionar. Ainda que precariamente, moradores da esquina estão virando garis voluntários do espaço sob a marquise onde habitam. Já é um começo, uma semente para uma ação mais inteligente das prefeituras.
A gente sabe que o ócio é o pai, a mãe, a avó de todos os vícios. Proponho que dona Gilda – na sua simplicidade cidadã – passe à história como a criadora do método “A pedagogia do desabrigado e a inserção social pela vassoura”.
Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com quatro livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália e publica suas crônicas às sextas-feiras no Dom Total.